One Flew Over the Cuckoo's Nest
Voando
sobre um ninho de cucos
“Do riso às lágrimas, Voando Sobre Um
Ninho de Cucos concretiza um estudo assaz pertinente sobre as ténues fronteiras
entre a saúde e a doença mental.”
Foi um grande filme dos anos 70 (lançado em
1975), vencedor de 5 óscares (melhor filme, ator, atriz, realizador e argumento
adaptado), adaptado de um romance de Ken Kesey e produzido pelo tão conhecido
ator Michel Douglas.
O presente filme convida-nos a uma
reflecção cuidada entre o que é considerado sanidade mental e o que é loucura;
ou melhor ainda: qual a distância entre as duas?
A associação vulgar que a maioria das
pessoas faz, é que uma pessoa com uma doença mental vive numa constante
loucura, mas não serão igualmente loucos os ditos “saudáveis”? Segundo Millôr
Fernandes “A única diferença entre a loucura e a saúde mental é que a primeira
é muito mais comum” pois todos nós temos uma dose de loucura.
E aqui quando se fala de loucura
referimo-nos a um desequilíbrio, maior ou menor, entre aquilo que pensamos e
fazemos, ou muitas vezes, um desequilíbrio entre o comportamento do indivíduo e
as regras sociais… E quem não teve um desequilíbrio na sua vida, mais ou menos
percetível? E isso significa que fomos por momentos loucos, ou que somos por
momentos sãos?
Voando
Sobre Um Ninho de Cucos conta a história de Randle Patrick McMurphy
(Jack Nicholson), um homem delinquente e preguiçoso que, para se livrar dos
trabalhos forçados na prisão, alega insanidade mental dando entrada num
hospital psiquiátrico. Hospital este que o levará para uma realidade que
estaria longe de imaginar ser possível. É aqui que conhece um grupo de
indivíduos com perturbações mentais, tendo cada um destes as suas
particularidades, e também a inflexível, insensível e calculista enfermeira
Ratched (Louise Fletcher). Esta trata os seus pacientes como se fossem
crianças, limitando-os a horários e rotinas previamente planeadas, acompanhadas
de medicamentos que não passam de drogas para os controlar e manipular.
O filme passa-se na década de 70 mas
retrata alguns aspetos que se verificam ainda nos dias de hoje. Na verdade
todos nós temos um medo terrível de um dia nos tronarmos loucos, ou que quem
nos rodeia, especialmente de quem mais gostamos, se torne insano. De certa
forma tentamos moldar os indivíduos desde bebés, enquadrando-os nas regras
sociais, morais e políticas para que se tornem pessoas equilibradas, pessoas
mentalmente sãs que sabem viver em grupo. Mas como se costuma dizer, o ser humano
não é de ferro, e por vezes as coisas falham, fragilizando-nos. Pode então
surgir a necessidade de ajuda e é então que o medo surge.
A simples sugestão ou ideia de se
consultar um psicólogo cria uma certa resistência, porque ou só consulta o
psicólogo quem é tolinho ou porque a seguir a um psicólogo vem sempre um
psiquiatra e aí já não há volta a dar. Acabamos de abordar duas áreas distintas
mas complementares que, embora com tendência para diminuir, são alvo dum
estigma social. Porque ninguém quer ser tolinho, ou ter filhos tolinhos, ou
pais, ou maridos e esposas… e por isso a consulta de um destes profissionais
pode tornar-se motivo de vergonha, pelo que é evitada.
Assim sendo, talvez fosse importante
estabelecer a diferença entre estas duas áreas e conhecer o campo de ação
destes dois profissionais.
O Psicólogo e o Psiquiatra são ambos
profissionais da área da saúde mental, contudo o Psicólogo tem uma formação
superior em Psicologia e o Psiquiatra tem uma formação superior em Medicina,
especializando-se depois em Psiquiatria. Assim, podemos dizer que o Psicólogo
não é um médico, enquanto o Psiquiatra o é. Como consequência da formação de
base, o Psicólogo e o Psiquiatra têm tipos de intervenção distintos: ambos
dispõem de técnicas de diagnóstico próprias e instrumentos de avaliação
próprios. No entanto o Psicólogo tem um tipo de intervenção centrado na relação
terapêutica, enquanto o Psiquiatra intervém através da prescrição de
medicamentos. O Psicólogo tem uma visão dos problemas psicológicos ancorada em
fatores vivenciais, relacionais e de desenvolvimento, enquanto o Psiquiatra
tem uma visão assente em fatores de ordem biológica/orgânica.
A Psicologia é a ciência que estuda os
processos mentais e o comportamento (humano e animal), pelo que estuda
conceitos como a perceção, a cognição, as emoções, a personalidade, o
comportamento, as relações interpessoais. Tenta compreender o papel que estas
funções desempenham no comportamento social e nas dinâmicas sociais, pelo que
aplica o seu conhecimento muitas vezes nos assuntos relacionados com a família,
a educação e o trabalho.
Por outro lado, e tratando-se de um
médico, o psiquiatra tem por objetivo
tratar as doenças mentais, pelo que tende a usar o modelo médico, tanto no
diagnóstico como no tratamento das doenças.
Aqui os problemas são vistos como uma doença ou perturbação, no âmbito
dos quais o psiquiatra recorre a recursos da medicina a fim de estabelecer
diagnósticos e levar a cabo o tratamento, este último predominantemente baseado
na terapia medicamentosa (psicofármacos). Sendo um médico, o Psiquiatra tem uma
formação que lhe permite a prescrição de fármacos.
A Psiquiatria, como especialidade
médica, lida com as doenças mentais em humanos através da prevenção, do
atendimento, do diagnóstico, do tratamento e da reabilitação. E cujo o
objetivo principal é reduzir o sofrimento psíquico para atingir o bem-estar.
É certo que as duas áreas podem
trabalhar sozinhas, mas no intuito de otimizar os resultados a parceria de
ambas é aconselhável. Isto porque a medicação permite estabilizar níveis muito
elevados de sofrimento para que o indivíduo possa estar mais equilibrado,
contudo, para que a mudança psíquica ocorra é necessário trabalhar-se aspetos
como os pensamentos e sentimentos e, tal só é possível com um acompanhamento
psicológico ou com psicoterapia.
Segundo a opinião de um psicólogo
clínico, Vítor Rodrigues, «Do mesmo modo que os medicamentos não permitem
alterar a informação de uma pessoa, resultante da sua história de vida, há
situações em que uma pessoa está momentaneamente tão angustiada, triste e
culpabilizada ou mesmo agitada, delirante até, que o psicólogo não consegue
ajudá-la a lidar com a informação, a gerir a ansiedade ou a encontrar sentido».
Explica ainda o especialista que «nesse
caso, os medicamentos administrados por um psiquiatra podem tornar-se
fundamentais e imprescindíveis, até que o paciente fique suficientemente calmo
ou lúcido para poder beneficiar de uma psicoterapia. Também são numerosos os
casos em que a medicação não chega, sendo útil a intervenção do psicoterapeuta
para ajudar a pessoa a reformular-se, conhecer-se, modificar modos de pensar,
de reagir e de sentir».
Foi tudo isto que falhou no hospital
psiquiátrico onde Randle Patrick McMurphy foi parar e talvez tenha sido por
estas noções que ele tenha lutado. Pois todos eles vivem num pânico constante,
numa repreensão doentia, fruto dos tratamentos como as sessões altamente
condicionadas e controladas pela enfermeira Ratched, os choques elétricos e
mais grave ainda a Lobotomia (intervenção cirúrgica no cérebro em que são
selecionadas as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo e outras vias
frontais associadas. O procedimento leva a um estado de sedação, de baixa
reatividade emocional nos pacientes.) Chega a ser perturbador quando nós,
espectadores, em conjunto com McMurphy nos apercebemos que a grande maioria dos
pacientes é voluntário na clínica.
É à medida que se apercebe desta
situação que ele tenta reverte-la com a sua rebeldia e com provocações. Porque
a real verdade que emerge à medida que o filme se desenrola é que a estas
pessoas consideradas loucas, é-lhes retirado o livre arbítrio, a capacidade de
julgar por si só e de tomar decisões. E não será esse um bem precioso na vida
de cada ser humano? Não será isso que nos distingue uns dos outros e permite
que cada um escreva a sua história de vida?
O que ele quer fazer entender é
exatamente isto. Que independentemente da limitação psíquica e mental de cada
um, é o dever da sociedade e dos profissionais de saúde tentar manter o máximo
de capacidades cognitivas possíveis. Porque mesmo que um indivíduo seja
bipolar, esquizofrénico, depressivo… há-de saber sempre que o seu gelado
preferido é o de morango, que o seu clube é o Porto e não o Benfica, que jogar
bola com os amigos é divertido, que determinada pintura é bonita (…) porque
toda a sua vivência, ou pelo menos parte dela, está gravada em si mesmo. Tal
como é demostrado no filme, um louco também gosta de passear, um louco também
sabe pescar, um louco também gosta de assistir a um jogo na televisão. E quem o
priva destas pequenas grandes coisas é um louco ainda maior!
A existência de um tal tratamento que,
era suposto permitir que os seus doentes conquistassem uma vida emocionalmente
estável, e que afinal não passa de um roubo de personalidades através de
métodos macabros; a conversão à loucura por livre e espontânea vontade dos
pacientes para não se condenarem a si próprios a castigos que os deixarão
irreconhecíveis, mostra bem o quanto é ténue, o quanto é fina a linha que
separa a loucura da sanidade!
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